Não sou brasileira, mas sou quase. Meus
pais Alfons e Helga saíram de Hamburgo em abril de 1990, quando meu
irmão Wolfgang e eu éramos crianças de 10 e 3 anos, respectivamente, e
se instalaram em Salvador, Bahia. Desde Hamburgo meus pais eram
luteranos, e mantiveram a religião na Bahia, apesar da forte presença
católica e das religiões afro-brasilienses. Cresci ouvindo falar em Deus
como um controlador do universo, a quem os seres humanos devem
obediência e medo. Sempre ouvia falar na igreja que Deus é quem permite
ou proíbe que as coisas aconteçam em nossa vida. Me lembro de uma vez
num sermão o reverendo comparar Deus a um controlador de voo,
responsável por manter os aviões no ar. Nesse dia me lembro de ter
falado ao meu pai: mas os aviões caem...
Crescemos e fomos para o bairro da
Moóca, em São Paulo, sempre com a visão de Deus como o controlador do
Universo. Eu, por ter vindo para cá bem nova não tive muitos problemas
com o idioma, ao contrário de meu irmão que, assim como meus pais, não
entendiam o uso dos artigos e pronomes com substantivos masculinos e
femininos, o que os levava a falar coisas com "meu casa", "meu mãe",
"minha pai", "a namorado de meu irmã", "meu cunhada" e coisas assim, o
que sempre era motivo de piada entre os amigos brasileiros.
Em 2004, meu irmão resolveu fazer
faculdade. Aos 24 anos achou que poderia seguir carreira em São Paulo
mesmo, já que meus pais não pensavam em voltar para a Alemanha e ele
também não tinha o menor interesse em voltar. Se sentia muito bem no
Brasil. Nós no sentíamos bem. Iniciou, em fevereiro, o curso de
Publicidade e Propaganda no Presbiteriano Mackenzie, uma das melhores
faculdades de São Paulo. Havia acabado de adquirir um carro. Tinha uma
belíssima namorada brasileira, que era modelo na época. Ele estava muito
feliz com a vida. Falava que era um "quase brasileira", e fazia os
amigos rirem com isso. Meu irmão e eu nos dávamos muito bem. Ele era meu
melhor amigo e eu era a melhor amiga dele, a ponto de confidenciarmos
um com o outro coisas que nem nossos pais sabiam. Ele me ensinou a
dirigir e eu o ensinava a falar português. Nós nos amávamos muito. Eu o
tinha como um herói, e ele me via como uma boneca de porcelana, com el e
mesmo dizia.
No dia 27 de maio de 2004, ao sair da
faculdade, meu irmão foi abordado por três homens que o mandaram
entregar o carro. Sem esboçar qualquer reação meu irmão lhes entregou a
chave e se afastou. Ao entrar no carro, um dos homens acertou meu irmão
com um tiro que foi fatal: na mesma hora ele caiu morto em frente a
faculdade. Naquele dia eu perdia uma das pessoas mais importantes da
minha vida: Wolfgang Rudolph Jung Hoffmann, o Wolf, meu irmão a quem eu
tanto amava, que morreu aos 24 anos. A família entrou em crise: meus
pais se desesperaram, meus tios pensaram em fazer justiça com as
próprias mãos. Mais ainda: minha crença em Deus se esvaziou por
completo. Eu, uma adolescente de 17 anos totalmente descrente de Deus.
Me lembro de ter dito: que Deus controlador é esse que permite um rapaz
tão cheio de vida como meu irmão morrer de uma forma tão injusta?
Ninguém me respondia. Na catedral luterana o reverendo dizia apenas:
"deus quis assim". Quis assim como? Ele fica feliz com a desgraça da
família dos outros? Onde fica o tal amor que a Bíblia tanto fala?
Para encurtar a história, nos mudamos
para o interior de SP em 2004 mesmo e em 2005 voltei para São Paulo,
para morar sozinha e iniciar minha vida com meus próprios braços. Em
dezembro de 2009 minha família resolveu voltar para Hamburgo, Alemanha. O
Brasil, essa terra abençoada de gente alegre, era doloroso demais para
minha mãe, que lamenta por ter passado uma tragédia tão grande num país
tão bonito. E eu que não tinha nada a perder voltei também, mas agora
para Berlin, onde vivo hoje.
Desde que meu irmão se foi perdi totalmente a fé em Deus. Fiquei depressiva. Precise de acompanhamento psiquiátrico. Tive crises emocionais. Tinha momentos terríveis em que precisava ser socorrida por estar em uma crise nervosa. Me lembro de um dia, já em Berlin, durante uma crise emocional onde eu gritava de desespero eu dizer: dá pra sair da minha vida, Deus? Você já me trouxe prejuízos demais. E assim vivi. Não queria corre r o risco de crer num Deus que eu pensava proteger os que amo e ter de conviver com novas tragédias.
Desde que meu irmão se foi perdi totalmente a fé em Deus. Fiquei depressiva. Precise de acompanhamento psiquiátrico. Tive crises emocionais. Tinha momentos terríveis em que precisava ser socorrida por estar em uma crise nervosa. Me lembro de um dia, já em Berlin, durante uma crise emocional onde eu gritava de desespero eu dizer: dá pra sair da minha vida, Deus? Você já me trouxe prejuízos demais. E assim vivi. Não queria corre r o risco de crer num Deus que eu pensava proteger os que amo e ter de conviver com novas tragédias.
Agora, depois de viver e estar
totalmente estabilizada aqui, começo a ver Deus de uma outra forma. Li o
livro de um teólogo chamado Jurgen Moltmann e venho lendo algumas
coisas sobre Deus escritas por alguns líderes religiosos brasileiros.
Um deles é o reverendo Ricardo Gondim, da Igreja Betesda em São Paulo.
Estou descobrindo uma outra forma de ver Deus: ele não tem nada a ver
com os acontecimentos humanos. Deus não controla nada, mas ama os seres
humanos e lhes apoia nos momentos difíceis. Há alguns dias atrás, depois
de ouvir um dos sermões do rev. Gondim pela internet cheguei à
conclusão: Deus não teve nada a ver com a morte do Wolf, pois ele não
permitiu nada, mas foi ele quem me ajudou a aguentar viva quando eu
tentei tirar minha vida 15 dias após a morte dele. Comecei a chorar na
hora. Pedi perdão a Deus por te-lo culpado pelas desgraças da minha
vida. Espero que ele me perdoe por isso!
Ainda tenho várias dúvidas sobre Deus. E
até hoje não me recuperei do trauma da morte do Wolf, mas aos poucos as
coisas estão se encaixando. Mas independente de uma coisa e outra agora
estou me sentindo melhor comigo mesma. Hoje faz exatamente 8 anos que
meu irmão se foi, e é o primeiro ano que passo o dia inteiro sem
qualquer crise depressiva. Ainda relembro a cena que vi quando cheguei
em frente à faculdade, mas lido melhor com isso. Entendo que todos
estamos sujeitos à tragédia.
Espero que esse texto seja mais um passo rumo à cicatrização dessa ferida tão dolorosa.
Espero que esse texto seja mais um passo rumo à cicatrização dessa ferida tão dolorosa.
Por: Liesel Hoffmann.